A Beira do Abismo
À Beira do Abismo (CENA 1)
(O apartamento está mergulhado num silêncio tenso. A luz amarelada do abajur projeta sombras alongadas nas paredes. O ar pesa como se o próprio ambiente estivesse contido, esperando a tempestade desabar. Ela está de pé, os braços cruzados, perto da porta. Ele anda de um lado para o outro, ofegante, os olhos faiscando de raiva.)
— Eu não aguento mais! — a voz dela sai firme, mas tremida. — O que vão pensar os vizinhos com essa gritaria toda? Se você continuar, vou chamar a polícia. Isso é abuso, agressão contra uma mulher. Que barbaridade!!!
Ele para abruptamente no meio da sala e a encara. O ódio nele é um incêndio descontrolado. O peito sobe e desce num ritmo frenético. Algo sombrio e primitivo toma conta de sua expressão, um olhar que a faz sentir um calafrio na espinha.
— Você é uma pedra! — Ele cospe as palavras, a voz rouca, grave, carregada de ressentimento. — Sempre se fazendo de vítima!
O peito dela aperta. Já viu esse olhar antes. Mas, dessa vez, há algo diferente... mais perigoso.
— Na verdade, você não me ama. Você nunca me amou! — Ele dá um passo à frente, o rosto retorcido em fúria. — Quando foi que uma mulher não quis namorar seu homem? Quando foi que uma mulher virou as costas para o próprio marido?!
A voz dele sobe, explode como um trovão.
— Ficar só me criticando, me corrigindo, me acusando!
Ele gesticula violentamente, derrubando um copo da mesa. O som do vidro se espatifando no chão ecoa no silêncio sufocante.
Ela recua instintivamente, o coração disparado.
Ele vê o medo nos olhos dela e algo nele se alimenta disso. Avança mais um passo, o peito inflado pela tempestade emocional que o consome.
— Você me castrou! Me matou por dentro! — O grito agora é um rugido. — Eu sou um homem, caralho! Preciso de carinho, preciso de paixão, não dessa frieza, dessa indiferença!
O rosto dela endurece, mas suas mãos tremem. Ela sente o próprio corpo encolher-se contra a parede.
— Sai de perto de mim. — A voz dela é baixa, mas cortante.
Ele congela. Os olhos dele, cheios de ira, encontram os dela, cheios de algo que nunca quis ver ali: medo real.
O nó na garganta dele aperta. A fúria pulsante vacila por um instante. O que ele está fazendo? O que ele se tornou?
Ela engole em seco e sussurra:
— Se você encostar um dedo em mim, eu juro que você nunca mais vai me ver.
O olhar dele se parte ao meio. Um lampejo de lucidez corta o véu do ódio. O peito ainda sobe e desce, mas agora é de pavor do que quase fez, do que quase se tornou.
Ele leva as mãos ao rosto e se afasta, como se estivesse tentando sair do próprio corpo.
— Eu vi... — a voz dele agora sai rouca, trêmula.
Ela não responde, apenas observa, ainda paralisada.
— Eu vi a sombra... O menino ferido. O ataque porque você não é o que minha dor quer que você seja.
Ela permanece imóvel, como um animal pronto para fugir ao menor movimento brusco.
Ele respira fundo e fecha os olhos por um momento. Quando os abre, estão cheios de uma exaustão esmagadora.
— Me perdoa.
O silêncio entre os dois é um precipício.
Ela engole a bile amarga na garganta e respira fundo.
— Você vai dormir na sala. — Sua voz volta firme. — E, por favor, que fique claro: não quero que me invada com tuas reflexões. Toma atitudes, porque esse é o melhor jeito de mostrar que mudou.
Ele baixa a cabeça.
— E se eu não mudar?
Ela dá um meio sorriso triste.
— Então, da sala, você vai embora. E vai se curar — em respeito ao que a gente ainda tem de amor.
Ela entra no quarto e fecha a porta.
Ele fica ali, no escuro, sentindo o peso do que quase destruiu.
O Silêncio Depois da Tempestade (CENA 2)
(Ele está sentado no sofá da sala, a cabeça entre as mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos. O apartamento inteiro parece ecoar a sombra do que aconteceu. Lá dentro, atrás daquela porta fechada, ela dorme – ou tenta. E ele, sozinho, encara o abismo do que se tornou.)
— Eu vi.
(Ele fecha os olhos, deixando as palavras emergirem do peito como fumaça de um incêndio recém-apagado.)
— Eu, super pisciano, com Netuno na casa 7… projetando na minha parceira uma deusa da compaixão. Acolher. Perdoar. Ser Santa Maria.
(Um silêncio. A compreensão o atinge como um golpe.)
— Que loucura… como não percebi?
(Ele balança a cabeça, incrédulo consigo mesmo. E, no entanto, há um fio de esperança.)
— Que bom que ela tem Marte em Touro e eu, Vênus… Há algo que ancora. Há desejo, há potência.
(Ele aperta os olhos, como se tentasse enxergar algo além do que já foi revelado.)
— Não está acontecendo. Ela não se abre para mim. E por quê?
(As palavras saem baixas, duras, como um veredito.)
— Porque eu não tenho limites. Porque sou grosseiro. Porque grito.
— Porque sou tudo o que mais repudio em um homem.
— E justo com ela. Justo com quem amo infinitamente.
(Ele ri, um riso amargo, quase infantil.)
— Mas ela não é minha mãe. Nunca foi. Nunca será.
(Seu peito aperta.)
— E eu? Eu sou um menino ressentido. Um menino ferido gritando para a mãe que o abandonou.
(Ele se levanta, anda pelo cômodo. Passa a mão pelos cabelos desgrenhados. O coração ainda martela no peito.)
— E quando a ilusão se desfaz? O que resta?
(Se encara no reflexo do vidro da janela. Olhos fundos, avermelhados. O rosto de um homem, mas o olhar de uma criança desesperada.)
— Sombra. Frustração. Ataque.
(Ele sente a verdade dessas palavras queimando dentro dele.)
— Eu ataquei.
— Gritei porque o menino em mim não soube lidar com o ‘não’. Porque ela disse ‘basta’.
(Ele respira fundo. As lembranças voltam como facadas: o olhar dela, tenso, cheio de medo. Ele avança um passo, depois recua. Se vê de fora. Se vê como um animal acuado.)
— EU QUERO VER.
— O exercício da semana: "me auto observar". Um pedido que agora parece uma maldição, mas será minha salvação.— Eu vi.
(Ele se senta de novo, olhos fixos no chão. A voz sai mais baixa, quase como um sussurro.)
— Eu posso discordar dela. Mas preciso colocar lógica, não emoção.
(Ele esfrega as mãos no rosto, tentando organizar o caos dentro de si.)
— Vou colocar o Ganesha acima da cômoda sempre que sentir que estou entrando em transe.
— Assim, ela saberá. Assim, ela não alimenta minha loucura me retrucando.
(Ele pensa por um momento. Pondera. As palavras saem com um gosto estranho.)
— Pode ser um bom acordo.
— E se, quando eu invadir, ela também colocar o Ganesha sobre a mesa? Me sinalizando o que eu não percebo?
(Ele suspira.)
— Preciso encontrar um jeito de me conter.
(Um segundo de hesitação. A pergunta paira no ar.)
— Devo fazer terapia com urgência? Não quero perde meu amor, minha mulher ideal em carne e osso, linda e virtuosa como ninguém.
(Ele olha ao redor. A bagunça. O copo quebrado. Os rastros da tempestade. Ele vê tudo agora.)
— Eu percebi a sombra.
— Iluminou a situação.
— E eu vou trabalhar isso na terapia.
(Ele se levanta, caminha devagar pela sala. Olha para a porta do quarto. Não toca nela. Sabe que não pode.)
— O que precisa ser feito para viver bem na minha própria casa?
(Ele respira fundo e murmura para si mesmo, como um mantra, um feitiço para reconstruir o que quase destruiu.)
— Proibido gritar, debater, invadir.
— Avançar nas gentilezas. No carinho.
— Fazer coisas que a façam sorrir. Agradecer.
— Tom… altura da voz.
— Água para as plantas. Vasos para as plantas. Deixar tudo bonito.
— Ser mais organizado. Dar conta das minhas coisas.
— Colaborar na cozinha. Limpar talheres e copos. Deixar a pia brilhando.
— Cuidado com as luzes acesas sem necessidade.
— Lixo nos dias certos.
— Cama arrumada.
— Atenção para a pasta de dente.
— Checar roupas antes de colocar para lavar.
(Ele respira. Longo. Profundo. Como se cada palavra fosse um tijolo no caminho de volta para si mesmo.)
— "Toma atitudes. Esse é o melhor jeito de mostrar que mudou".
— Vou tomar mesmo.
— Eu amo ela. E não a quero perder.
(Ele se senta, recosta a cabeça no encosto do sofá. Olha para o teto. O silêncio da sala agora não é mais tão pesado. Ainda dói, mas não pesa como antes.)
(Ele fecha os olhos.)
— Eu vou mudar. Ou vou embora.
— Mas minha amada… prometo para mim mesmo: nunca mais vou profaná-la.
(Ele aperta os olhos. As lágrimas ardem.)
— Como é possível ser tão louco assim?
(Ele leva a mão ao peito, como se segurasse algo invisível.)
— Meu Deus… meus guias… meus mestres…
— Não me abandonem nesta hora.
— Preciso ganhar esta batalha comigo mesmo.
(O silêncio permanece. Mas, desta vez, há algo diferente nele. Algo novo.)
Comentário:
A transformação dói, mas é o único caminho para a luz que merecemos.
O texto é visceral, intenso e profundamente humano. Ele retrata o momento de autoenfrentamento de um homem que se vê desmoronando diante da própria sombra, confrontando suas projeções, medos e comportamentos destrutivos. A mensagem central parece ser a necessidade de responsabilização e transformação pessoal – o reconhecimento da própria toxicidade, o desejo sincero de mudança e a luta interna para não perder algo precioso por causa de padrões inconscientes.
A jornada emocional do personagem é forte: ele sai do delírio da idealização (Netuno na Casa 7) para a percepção dolorosa da realidade – sua parceira não é uma salvadora, e ele não pode continuar sendo um menino ferido que reage com agressividade quando suas expectativas não são atendidas. O choque da tomada de consciência se desdobra em um esforço de organização mental e prática para mudança (representado pela lista de atitudes concretas), sugerindo que o amor só pode sobreviver se for sustentado por ações reais e não apenas por arrependimentos passageiros.
O final é particularmente poderoso: ele não se exime da responsabilidade, não se vitimiza, mas entende que precisa lutar contra si mesmo para não se tornar aquilo que ele mais teme. O silêncio da última cena sugere um recomeço – não para o relacionamento em si, mas para o próprio protagonista. Venceu o amor.
te amo
Hector Othon
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